segunda-feira, abril 02, 2007

Barco


"Se os barcos se fazem com a ciência, a navegação se faz com sonhos. infelizmente a ciência, utilíssima, especialista em saber "como as coisas funcionam", tudo ignora sobre o coração humano. É preciso sonhar para se decidir sobre o destino da navegação. Mas o coração humano, lugar dos sonhos, ao contrário da ciência, é coisa imprecisa. Disse certo poeta: "Viver não é preciso." Primeiro vem o impreciso desejo de navegar. Só depois vem a precisa ciência de navegar.
...Não só os poetas: C. Wright Mills, um sociólogo sábio, comparou nossa civilização a uma galera que navega pelos mares. Nos porôes estão os remadores. Remam com precisão cada vez maior. A cada novo dia recebem remos novos, mais perfeitos. O ritmo das remadas se acelera. Sabem tudo sobre a ciência do remar. A galera navega cada vez mais rápido. Mas, perguntados sobre o porto do destino, respondem os remadores: "O porto nao nos importa. O que importa é a velocidade com que navegamos."
C. Wright Mills usou essa metáfora para descrever nossa civilização por meio de imagem plástica: multiplicam-se os meios técnicos e científicos a nosso dispor, que fazem com que as mudanças sejam cada vez mais rápidas; mas não temos idéia alguma de "para onde" navegamos.
"Para onde?" Somente um navegador louco ou perdido navegaria sem ter idéia do "para onde". Em relação à vida da sociedade, ela contém a busca de uma utopia. Utopia, na linguagem comum, é usada como "sonho impossível de ser realizado". Mas não é isso. Utopia é um ponto inatingível que indica uma direção.
(Do livro Entre e a ciência e a sapiência - Rubem Alves)